Colégio interno: a cilada

Houve um tempo, há muito tempo, em que estudar num colégio interno me parecia a coisa mais divertida do mundo. Eu imaginava longas noites de meninas brincando e conversando, já que dormiriam todas no mesmo quarto, além de um sem número de aventuras, diversões e toda a alegria de uma convivência intensiva. E olha que isso foi bem antes do sucesso do Harry Potter.

Mas a literatura  me ensinou que era tudo muito diferente do que eu pensava. Colégios internos foram criados por pessoas cruéis, que se divertem com o sofrimento de pobres criancinhas inocentes impondo a elas um excesso de regras que não fazem sentido nenhum. Aliás, foram criadas justamente pra serem desobedecidas e permitir a esses adultos o deleite de aplicar castigos físicos.

Tanto pior se for na Inglaterra, e pior ainda se o pobre estudante for órfão. Aí a desgraça é completa, porque é uma verdade universalmente reconhecida que um órfão inglês não vai encontrar uma única pessoa decente disposta a cuidar dele, ou pelo menos não até ele ter comido o pão que o diabo amassou. E boa parte da via crucis envolve uma estadia no pior colégio que o guardião desalmado puder encontrar.

Jane Eyre ( Charlotte Brontë, 1847)

A pobre Jane realmente não teve muita sorte na vida. Orfã desde muito pequena, foi entregue aos cuidados do tio materno, que também acabou morrendo e deixando a menina com a esposa dele. Esta, por sua vez, agia como a madrasta da Cinderela, mimando até estragar seus próprios filhos e fazendo questão de ressaltar pra Jane sua condição de agregada. As coisas pareciam melhorar quando a tia se convenceu a deixá-la ir pra o colégio, mas a instituição escolhida foi a Lowood do Sr. Brocklehurst, um falso moralista cristão.

O que aconteceu de menos pior foi Jane ser condenada a carregar uma placa de “mentirosa” pela escola, e o de pior, bom, foi uma epidemia de tifo que matou boa parte das internas. Mas a parte mais triste mesmo é saber que essas passagens foram baseadas na vida da própria autora, que chegou a perder duas irmãs em circunstâncias bem parecidas. O filme mais recente baseado nesse livro é de 2011, com a Mia Wasikowka, mas a foto é da série da BBC de 2006.

David Copperfield (Charles Dickens, 1850)

A história de David começou melhor que a de Jane. Órfão de um pai que ele nem chegou a conhecer, ele ia sendo criado com bastante carinho por sua mãe e sua ama. Até que a mãe resolveu casar de novo, e justo com a pior opção disponível, o Sr. Murdstone. O garoto acabou despachado pra Salem House, um depósito de crianças disfarçado de escola, onde passou por provações como ter afixado nas costas os dizeres ” Cuidado, ele morde!” (pelo visto devia ser bem comum nas escolas inglesas).

Mas nada é tão ruim que não possa piorar, e David acaba empregado pelo padrasto numa empresa de rótulos de garrafa totalmente insalubre. Nesse ponto a experiência é parecida com a do próprio Dickens, que também foi obrigado a trabalhar durante a sua infância. Essa foto aí é do futuro Harry Potter Daniel Hadcliffe, na adaptação da BBC de 1999.

Harry Potter e a Ordem da Fênix (J.K.Rowling, 2003)

Falando nele, olha aí. Nem mesmo o paraíso na terra que é Hogwarts escapou de ter seus dias de tirania. Como todos sabemos, Harry Potter foi parar nas mãos dos tios Válter e Petúnia logo após seus pais terem sido mortos por Valdemort, e passou por anos terríveis até o seu ingresso na escola de bruxos. Daí em diante foi só alegria, a não ser por uma ou outra batalha de vida ou morte com Comensais da Morte, Dementadores ou o próprio Tom Riddle, mas tudo corriqueiro.

As coisas ficaram difíceis mesmo foi com a chegada da professora de Defesa Contra Artes das Trevas Dolores Umbridge, o mal encarnado em rosa. Ela acaba assumindo o posto de inquisidora e logo depois de diretora numa época em que o Ministério da Magia andava perseguindo Dumbledore. Além de usar maldições proibidas em alunos, colocar uns contra os outros e ditar tantas regras que chegaram a preencher uma parede inteira, Umbridge foi principalmente lembrada por forçar Harry a escrever na própria carne ” Não devo dizer mentiras”.

A seguir, os filmes baseados em livros que eu não li:

A Princesinha (A little princess, 1995)

Sarah Crewe era uma inglesinha órfã de mãe que vivia na Índia com seu pai, um militar. Sua vida era bastante feliz, até que o Sr. Crewe foi convocado pra 1ª Guerra Mundial, e resolve mandar a menina pra um internato nos Estados Unidos. A intenção era mesmo das melhores, já que a mãe de Sarah também havia estudado no mesmo colégio, o que ele não sabia é que a megera Srta. Michin tinha transformado o lugar praticamente num reformatório.

E daí em diante foi só ladeira abaixo, já que o pai de Sarah morreu em combate e ela foi obrigada pela Srta. Minchin a trabalhar como faxineira pra pagar sua estadia. Sarah passou a dividir o quarto com a outra criança faxineira (!) e a ser humilhada constantemente. Sorte que ela tinha toda uma experiência em contar histórias adquirida com seus amigos indianos, e transformou isso numa forma de escapismo pra sua realidade miserável. Essa versão de 2005 foi dirigida por Alfonso Cuarón (de Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban, 2004), baseada no conto de Frances Burnett, escrito em 1905.

Não me abandone jamais ( Never let me go, 2010)

Certamente a mais triste de todas essas histórias mencionadas aqui. A trama se passa num “passado alternativo”, numa época em que a ciência teria chegado à cura de diversas doenças e conseguido elevar de forma significativa a expectativa de vida humana. Kathy, Ruth e Tommy são crianças que estudam num internato aparentemente idílico, onde são estimulados a exercitar dotes artísticos ao invés de terem matérias tradicionais.

Mas aí vem a parte estranha: eles nunca saíram da escola, têm que passar um braço numa espécie de leitor de código de barras pra registrar suas movimentações no prédio e existe uma preocupação excessiva para que cuidem do corpo e mantenham a saúde.

 Não dá pra falar mais sem revelar pontos importantes da trama, só posso dizer que teria sido muito melhor pra eles se fossem órfãos tradicionais. O filme é uma adaptação do romance de mesmo nome escrito por Kazuo Ishiguro em 2005.

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